"... Mas na noite, o cansaço que nos rasga a pele e os músculos,
atira-nos ao chão, combalidos da batalha que fomos tendo com o próprio corpo,
com as pernas em desobediência e os braços entorpecidos por uma força já
desnecessária. O cansaço que nos toma os olhos para passarmos a desistir do
esforço a que viver e pensar nos obriga. Fecha-se a alma, aninham-se os
membros, o corpo em espiral e o sono que chega e, que de uma assentada, leva as
horas consigo. Sonham-se anos no tempo rarefeito que a noite nos entrega, mas
dá-nos a liberdade de viajar, de procurar os sítios já esquecidos, os caminhos
que já nem recordávamos e que trilhamos perdidos. Torna-se vívida a memória,
enche-se de cor, os traços que esboçamos são reais, mas se não,
o subconsciente trata de nos fazer acreditar que sim. Paramos nos depois,
atravessamos o durante e acabamos o percurso no antes, dizemos coisas sem
sentido, cruzamo-nos com desconhecidos, gritamos num silêncio que não
transfigura o ruído que vai passando, lá no sonho que vamos persistentemente
sonhando. Falamos sós, falamos com todos, cantámos do píncaro de uma montanha,
voamos num mar azul do céu e nadamos nas nuvens, em pequenas poças que a chuva
insistiu em fazer. Somos sempre nós, no entanto, da maneira que queremos e as
histórias têm o fim que ao subconsciente cabe. Se não gostarmos, acordamos, se
gostarmos, foi um sonho realizado."
quinta-feira, 19 de julho de 2012
quinta-feira, 5 de julho de 2012
Fogo-de-artifício
Os olhares
colados ao céu, que agora não é mais do que uma tela panorâmica. O silêncio, um
silêncio tão incomum… A multidão impaciente, na qual nos fundimos, a mancha
coesa que nos abafa e onde o espaço que é nosso, é todo ele partilhado.
Enquanto as respirações se atropelam, os sussurros tropeçam e os sorrisos respondem
em cumplicidade, todos aguardam militantemente o que se segue, como se
fôssemos, numa pequena razão de instantes, donos do nosso destino.
Enquanto as
lanternas atacam o céu, em jeito de estrelas artificiais, manchando-o de pontos
de luz entorpecida, que se afastam e se desvanecem e o plim insistente dos martelos agoniados se torna mais tímido, aguardam-se
os primeiros fogos em percussão desordenada, como se Molière estivesse presente
e nos preparasse para o que se seguiria.
De repente, o
céu surge pintado das mais intensas cores, tela irreprimível, arco-íris
cromático, representação abstrata da felicidade momentânea em perturbação
sensorial condensada.
O teu olhar
reflete as cores que estouram naquele céu, agora, tão perto de nós e anunciando
um estranho limite que desconhecia. Detenho-me entre olhar para lá e olhar para
ti, contemplar-te, enquanto, nos teus olhos espelhados, observo, em êxtase
bipolar, o espetáculo indeferido nas minhas costas.
Talvez seja
pela sensação de felicidade instantânea e/ou por estares aqui, ao pé de mim, por
conseguir sentir a tua respiração quente na minha nuca e as tuas mãos
penduradas na minha cintura, mas sobem-me as lágrimas à garganta enquanto as
cores se sobrepõem em contraste na tela escura e os ritmos se atropelam
desordenadamente, como rufos de tambores de uma banda de aldeia.
É como se as almas
se revissem naquele espetáculo: o fogo que as apaixona, as cores que as
preenchem e a percussão inconstante de um coração pulsante… é talvez por isso
que a respiração me falta e as lágrimas desobedecem e todos os anos, todos os
que por cá andam, acorrem aos mesmos locais, nos momentos clonados do futuro,
para assistir à repetida sequência de banhos de cor e de ruídos que quase nos ensurdecem…
na esperança de nos reencontrarmos novamente naquele espaço limitado, partilhado
com a mancha humana, que diminui os nossos lugares, num miradouro improvisado,
aqui, à beira rio. Por cada ano que passa, a renovação das certezas do que nos
une e da felicidade trivial que é partilharmos um fogo-de-artifício. É que
ninguém sabe como é assistir ao fogo através do teu olhar…
5/7/2012
Foto by: Pedro Maricoto Monteiro
Fonte: https://www.facebook.com/photo.php?fbid=10150995292174839set=a.297595019838.143662.290834929838&type=1&theater
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