Nos últimos tempos,
muitas foram as vezes que dei comigo a pensar que, em tantos aspetos, o humano
tem vindo realmente a evoluir, porém, cada vez fico mais convicta de que esta
evolução não tem colmatado no progresso esperado. A crise económica e a
perpetração das desmesuradas diferenças sociais, a crise da empregabilidade e a
escravidão ainda dissimulada, as desigualdades, as diferenças e, pior que tudo,
a insensibilidade, são a materialização dessa minha suspeita.
Se certo é que, aos
animais cabe ferir o inimigo por razões mais irracionais que à complexidade
humana não são compreensíveis, essa é justificável porém. Já aos humanos, que
se vangloriam da exclusividade da sua capacidade intelectual, das suas
competências, das suas emoções, das sua razão e das restrições morais, não
assiste aquela brutalidade do mundo selvagem, pois o lóbulo frontal do cérebro
responsabiliza-se habilmente pela empatia quase que automática que nutrimos
quando vemos um pai a abraçar orgulhosamente o seu filho, quando um mendigo nos
alcança e pede ajuda, quando um ente querido nos sorri e quando um amigo sofre.
Pois, no entanto, parece-me que a sociedade nos foi mutilando, estamos cada vez
mais emocionalmente incompetentes, porque sentimos uma necessidade urgente de
nos provarmos diariamente perante pessoas, entidades e um sistema para os quais
somos meros números que não mais fazem do que manter a máquina em
funcionamento. Essa necessidade, essa obrigação corrompeu-nos inevitavelmente e
somos diariamente consumidos por essa tarefa.
Antes fomos um bairro, um
bairro onde procurávamos no vizinho um ombro, onde partilhar um punhado de sal
não consistia numa dívida externa e onde o sorriso e a entreajuda consistiam
nos mais usuais métodos de pagamento. Somos agora fábricas onde se produzem
futilidades, indiferenças, sorrisos amarelos e “deixem-me em paz”. Saímos dessa
fábrica entorpecida e cinzenta sem olhar a paisagem que, perante isto, já não é
vaidosa e já só se veste de negro e betão. Chegamos a casa para os deveres
domésticos serem completados com o mesmo método que o trabalho até então.
Agarramo-nos aos bens materiais, ao carro topo de gama, à casa onde dois não
chegam para superar o eco para que, assim, o vazio das verdadeiras aquisições,
seja completado.
E
num tempo onde quase todos os que conhecemos têm acesso aos mais variados meios
de comunicação, telefones, redes sociais, chats,
telemóveis, as pessoas alienaram-se, calaram-se e o som que se ouve quando se
abrem as janelas é o dos efémeros choros abafados, gritos mudos e silêncios
ensurdecedores. Não se discutem mais do que os dias, nada mais do que palavras
banais que se dirigiriam aos mais perfeitos estranhos. Tornamo-nos desconhecidos
todos, aos olhos uns dos outros, mantemos as formalidades como que a dar uma
ideia errada de consistência na evolução humana. Cada vez mais egocêntricos,
cada vez mais individualistas, cada vez mais fechados no espaço que é nosso,
não deixando, por medo ou falta de razão, escapar as nossas ânsias, as nossas
preocupações, os nossos medos, as aflições até que, enfim, nos transformamos
nelas.
Curioso
saber que há séculos e séculos atrás, o Homem, sem acesso às tecnologias de que
hoje dispomos, sem acesso a meios e formas de comunicação tão diversos quantos
o que inundam os nossos lares, menos evoluídos, supostamente, com um milhão de
realidades por desvendar, ainda nos conseguem dar ensinamentos valiosos sobre o
que, a mim, me parece um dos problemas mais reais da sociedade dos nossos dias
- a alienação e a subsequente negligência que vamos partilhando com os nossos
entes queridos, com os amigos, com os colegas, com os necessitados e até mesmo
com o estranho que nos entrega a xícara do café. “A amizade é uma suma harmonia nas coisas divinas e humanas, com
benevolência e amor. Dons tão grandes, que não sei se os Deuses concederam
(exceto à sabedoria), outro maior aos mortais. Preferem uns a riqueza, outros a
boa saúde, outros o poder, outros as honras, e, muitos, os prazeres. Estes últimos
são só muito próprios das bestas, e o outro caduco e perecível, dependente não
do nosso arbítrio, mas da inconstante fortuna”, dizia Cícero, mas parece-me
que a empatia se foi sumindo, sofremos de falta de amigos e, como tal, somos
cada vez mais infelizes e é sempre mais cómodo tentar desviar o olhar da
tristeza dos que nos rodeiam, como se encarássemos com alguém que preferiríamos
não ver e fingimos um olhar distraído.
Tenho
saudades da amizade primitiva, da relação forte estabelecida, da lealdade, dos
pactos de sangue, das tertúlias, dos clubes, das senhas, das brincadeiras à
hora marcada, dos choros e das angústias sempre respondidas… Não sente o leitor
saudades de sair porta fora e saber quem é o vizinho que se atravessa?
Somos
um povo solitário, que deambula na sua própria escuridão e se esconde para não
ver o caos e a penumbra que se estendem lá fora, os nossos olhos já não estão
habituados à luz e, portanto, ninguém pode brilhar. Nunca fez tanto sentido o
ditado, mas continuo a preferir estar acompanhada do que percorrer este caminho
tão sombrio só.
Tenho ainda saudades das
cartas, do que a palavra escrita, a falta e a distância operavam no
processamento daqueles vocábulos soltos compostos em jeito humilde de texto. Fazia-nos
a estranha impressão de que necessitávamos mais uns dos outros, porque de facto,
não estávamos lá em modo ausente num chat
qualquer. A amizade é o sentimento mais revelador da capacidade empática de
qualquer humano, entregarmo-nos a uma é quase tão sério como assumir um grande
amor, mas não há relação mais benéfica e proveitosa e nada mais precioso do que
ter um verdadeiro amigo. “Que coisa tão
doce como ter um com quem falar de todo tão livremente como consigo mesmo?
Seria porventura tão grande o fruto das prosperidades, se não tivéssemos quem
delas se alegrasse, tanto quanto nós mesmos? E se poderiam sofrer as
adversidades sem alguém que as sentisse ainda mais que aqueles mesmo que
as experimentaram?”
Ligue ao seu amigo, escreva-lhe uma carta,
segrede-lhe uma confidência, dê-lhe uma palmada suave nas costas, disponha o
seu ombro, receba um sorriso e saiba que não está só.