quarta-feira, 6 de junho de 2012

Calçada Portuguesa



Aquela calçada tatuada de pequenas pedras pretas e brancas, calcam-na pessoas, num vai e vem desenfreado, de olhos vazios, carregando sacos cheios de quase nada. De coisas que nem sequer precisam e que vão atirar para um lugar qualquer, quando chegadas a casa. Sigo os olhares que passam por mim, nunca os senti tão vagos, tão desapossados de sentimento, como observo no momento. Como se as emoções se tivessem escapado a qualquer altura e, a fundo perdido, nunca mais tivessem sido recuperadas. É que, nisto dos amores, das paixões e das emoções, não é bem como andar de bicicleta, perde-se o equilíbrio, cai-se ao mínimo balanço ou turbulência, perdem-se as capacidades de as manter vivas, as emoções, e de manter a luz naqueles olhos.
Já nem as peixeiras apregoam o peixe da mesma forma, não se abalroam nos seus dizeres, entre as muitas que se vão acomodando pela rua acima. Apenas interpelam os que espreitam ou os que aparentam dois dedos de interesse. Passei como que transparente, como se não gostasse de peixe ou, simplesmente desse a entender isso.
Apeteceu-me pousar a mochila pesada no chão, nessa calçada preta e branca que, juntamente com os lampiões centenários, quase nos transporta aos filmes antigos… não fossem apenas as personagens estarem tão mutadas na descrição que agora faço. Sento-me naquele banco de rua, espraio as costas, acomodo-me, baixo os óculos de sol da testa, porque o sol me obriga a semi-serrar os olhos num esforço quase hercúleo e vejo que as únicas personagens que se mantêm puras são as que partilharam os filmes antigos, os mudos, os cantados, os falados e os musicados. As gentes de outrora que, por ainda cá andam, falam em viva voz, riem, trocam pareceres políticos mais ou menos fundados e discutem, com um sorriso na boca, acerca dos seus desígnios, das suas opiniões ou simplesmente da menina bonita e cabisbaixa que trespassou o grupo em metade, ignorando, por inconsciência, que ali se formava uma elipse, onde todos se conheciam, ou, pelo menos, partilhavam um propósito.
Uma mulher passa, ela também, personagem desses filmes já desbotados, o tempo corrói o corpo, mas não alma, levo-me, eventualmente a pensar, que encontramos a morte no exato momento em que estaríamos totalmente prontos para enfrentar a vida com a devida prontidão e arcaboiço… Talvez não estejamos a aproveitar o tempo que nos é dado devidamente, sei lá. Enfim, passa a mulher, em marcha corrida, por aquele ajuntamento que não passava despercebido, ao que se ouve:
- Cada vez estás melhor!
- Sou como o vinho do porto! – Respondeu com um sorriso esboçado por entre as rugas que as emoções repetidas foram desenhando no rosto.
Uma gargalhada que tentei prender com os lábios, inevitavelmente, saiu solta, com vontades próprias de riso espontâneo… viram-se os homens e riem-se em uníssono comigo, como se, de personagens do mesmo filme nos tratássemos, num ato de compromisso. Não deixei de pensar, para comigo mesma, se não pertencerei eu a um outro enredo, a um outro elenco ou apenas se sou figurante neste argumento que levo a cabo. Nos filmes antigos, a preto e branco, a calçada mantinha-se intata e as cores das personagens eram sempre garantidas pelos atores, que traziam olhos cheios, lágrimas verdadeiras e sorrisos com matizados.


Fonte:  http://www.google.pt/imgres?um=1&hl=pt-PT&biw=1280&bih=681&tbm=isch&tbnid=fnhh0Llu3at6bM:&imgrefurl=http://www.prof2000.pt/users/secjeste/arkidigi/espinh02.htm&docid=V0mpwAX_AzX5QM&imgurl=http://www.prof2000.pt/users/secjeste/arkidigi/Espinho/Espin022.jpg&w=900&h=552&ei=HpXPT560J-yT0QX-ucHJCw&zoom=1&iact=hc&vpx=370&vpy=165&dur=3847&hovh=176&hovw=287&tx=157&ty=55&sig=110984502861381323981&page=1&tbnh=121&tbnw=197&start=0&ndsp=15&ved=1t:429,r:1,s:0,i:69

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