"O último voo"
Encheram a terra de fronteiras, carregaram o céu de bandeiras. Mas só há duas nações - a dos vivos e a dos mortos. (Juca Sabão)
São 19h, revejo de relance as fotografias de umas férias um pouco pautadas pela tristeza e recebo um telefonema, era a minha mãe, ligava-me num total histerismo da casa dos meus avós. Decidi desligar e telefonar para lá, atende-me a minha prima Claúdia
- Claúdia, o que se passa?
- O avô sentiu-se mal...
- Mas chamaram alguém já?
- Já, mas não há nada a fazer... já se foi...
Foi ao som destas palavras que não consegui conter uma lágrima... Sinto, por momentos, as minhas pernas desfalecerem, a alma evadir-se do meu corpo e uma convulsão de pensamentos apodera-se de mim e nego, nego, por entre soluços que tenha acabado por ali...
Saio aos tropeçoes casa fora, e oiço o som aflito das ambulâncias, sinto um rasgo de esperança, algo em mim me dizia que algo ainda havia para fazer...
Chego enfim, abraçam-me numa dor solidária e lágrimas contagiosas multiplicam-se... Não há um rosto que não transpareça dor, uns fechados no seu pesar, choram, na sua maior intimidade... choram-lhes as almas!! Outros não contém a dor que sentem e as lágrimas escorrem fluentemente pelos rostos carregados e uns, ainda, gritam de desepero por alguém que já partiu. Mas todos, todos, ébrios pela dor...
Os bombeiros tentam, em vão, recuperar a chama que já se apagou e, em esforços múltiplos agarram-se àquele corpo já sem qualquer vida. Espreito pela porta entreaberta do quarto e vejo-te os pés avô, mas já não consigo ver a tua alma... toda a esperança de tornar a ver-te sorrir desvaneceu nessa razão de segundos...
Chegam ainda os médicos do INEM, que tudo tentam para te tornar a trazer, mas a notícia pela qual já esperávamos há muito foi enfim reconhecida, partiste sem dizer nada, numa morte silenciosa que nos abalou a todos...
Olho-te deitado na tua cama avô, toco-te temerosa e sinto ainda calor da vida que deixaste para trás. Agarro-te a mão, aperto-a com força insinuante, esperando ainda que retribuas. Pareces dormir, numa calma que desconheço. Passaste para a outra margem sem avisar, e vislumbro a imagem de um rio cuja corrente conduz o teu bote para a zona mais iluminada, estás belo, em graça... acenas para todos nós com a mão direita e na esquerda carregas um punhado de terra - memórias do que levaste desta vida. Sorris e piscas o olho... eis que relembro a última vez que as nossas palavras se cruzaram, foi esta manhã ainda...
- Com que então deram-te porrada para vires a ti ontem à noite?
- Pois foi filha, aproveitaram que eu estava assim (rindo), e a tua avó é que não teve oportunidade!
- Ah, pois, senão seria até com o cacete!
- Marota!!!
Riste-te e piscaste o olho como costumavas sempre fazer-me! Éramos almas contíguas, a tua essência corre-me nas veias, corre-me a tua música, correm-me as tuas emoções exacerbadas, corre-me a tua aparente boa disposição... sinto-te ainda vivo em mim, mas agora que abandonaste o teu corpo, mais do que nunca...
O teu cansaço era notório, foste descansar, cruzaste-te comigo, fiz-te uma carícia no braço e foi esta a minha despedida... É esta a imagem que revejo agora... vezes sem conta...
Ainda agora partiste e já sinto a tua falta, desejo, mais do que alguma vez sentira, abraçar-te, tocar-te, beijar-te, ter-te comigo como tesouro precioso guardado por ferozes criaturas, para ninguém mais te tocar ou corromper... mas não te tenho o corpo, só te tenho a alma... o que tinhas para dizer, já o disseste, o que tinhas para fazer, já o concretizaste, nada de novo esperamos de ti! Apenas nos alimentamos das memórias com que nos deixaste e do pouco de ti que corre em todos nós, no sangue que fizeste fluir e nas sementes que ajudaste a florescer.
Se ao menos te pudesse ter dito o quanto te admiro enquanto tinha a certeza que irias ouvir... agora não ouves e fica só esse ressentimento. Mas porque foste o meu tutor e um pai estremozo, essa admiração que te tenho só esmurecerá no momento em que eu também levantar para o meu último voo. Por isso avô, descansa, porque viverás sempre na eternidade de cada um dos que te amam...
"A morte é como um umbigo: o quanto nela existe é a sua cicatriz, a lembrança de uma anterior existência." (Mia Couto).
Este humilde texto, composto muito pouco artísticamente não é para ser apreciado, foi a forma que encontrei para exorcizar a minha dor. A forma como cada um cicatriza as suas feridas é discutível e são inúmeros os meios... eu, embora com pouco labor, decidi prestar esta modesta homenagem a um homem que faz parte de mim, da minha essência, daquilo que eu sou... Tudo o que sei e amo na música foste tu que me ensinaste e todas estas emoções que carrego em mim, foste tu que mas depositaste na alma... és parte vital de mim, agora que deixaste o que te ligava a esta terra e partiste para o teu último voo, sinto que perdi um pouco de mim.
Certo é que nos deixaste memórias, e por isso nosso espírito chora saudoso, porque só nos resta isso... a memória... não esquecerei jamais esse teu sorriso, o toque do teu saxofone e a claridade imensa do teu olhar azul, da cor do céu, para onde partiste...
Requiescat in pacem (Que descanse em Paz)
Deambulações Nocturnas (02/05/2007)
E a noite finda…
Olho vagamente
As frinchas luminosas daquela janela,
De luz débil
Que da frieza da realidade me quer esconder.
Tento, a todo o custo,
Construir a imagem de uma noite
Que se estende lá fora
E que me isola no interior do meu ser.
Escuto atentamente
Os sons noctívagos desta cidade,
Que nunca dorme,
Mas que dormente assiste ao meu adormecer.
A luz alaranjada esmorece…
Os sons ténues embalaram os errantes nocturnos…
E nada mais noto na escuridão do meu quarto.
Súbita quietude… impavidez insólita…
e o desassossego do meu estar…
A noite dorme enfim e não eu…
Serei eu a Noite? Ou a Noite em mim pereceu?
21 de Fevereiro de 2007.2h. 25min.
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