terça-feira, 26 de junho de 2012

Subterfúgio


Quisera eu ficar estática, vislumbrar o movimento do mundo que, apesar de todos os sulcos e lombas, não se cansa de rodar. Passarem por mim as imagens rarefeitas desse tempo dessincronizado do meu, esse estático, inerte, límbico… Imagens translúcidas, em jeito de desaparecimento, porque cada vez mais este meu refúgio se transforma no mundo que quero habitar e o outro, que vejo ao longe, a realidade paralela. Reparei que as sombras são cegas, não me vêm nem se vêm umas às outras. Tropeçam, cruzam-se nos caminhos e só sentem o bafo de quem se aproxima. E eu aqui… na fronteira que me separara deles e do fio ténue que me afasta da loucura… vou ficando por aqui, neste trilho estreito, movimento-me pé ante pé, talvez ninguém dê por mim, guardando o silêncio que os gritos abafados interrompem. Tapo os ouvidos, debruço-me sobre o meu próprio corpo e aguardo… aguardo que o silêncio não me fira e que encontre nele, enfim, a comodidade que tantas vezes ele e a indiferença que arrasta não trazem.


quarta-feira, 6 de junho de 2012

Calçada Portuguesa



Aquela calçada tatuada de pequenas pedras pretas e brancas, calcam-na pessoas, num vai e vem desenfreado, de olhos vazios, carregando sacos cheios de quase nada. De coisas que nem sequer precisam e que vão atirar para um lugar qualquer, quando chegadas a casa. Sigo os olhares que passam por mim, nunca os senti tão vagos, tão desapossados de sentimento, como observo no momento. Como se as emoções se tivessem escapado a qualquer altura e, a fundo perdido, nunca mais tivessem sido recuperadas. É que, nisto dos amores, das paixões e das emoções, não é bem como andar de bicicleta, perde-se o equilíbrio, cai-se ao mínimo balanço ou turbulência, perdem-se as capacidades de as manter vivas, as emoções, e de manter a luz naqueles olhos.
Já nem as peixeiras apregoam o peixe da mesma forma, não se abalroam nos seus dizeres, entre as muitas que se vão acomodando pela rua acima. Apenas interpelam os que espreitam ou os que aparentam dois dedos de interesse. Passei como que transparente, como se não gostasse de peixe ou, simplesmente desse a entender isso.
Apeteceu-me pousar a mochila pesada no chão, nessa calçada preta e branca que, juntamente com os lampiões centenários, quase nos transporta aos filmes antigos… não fossem apenas as personagens estarem tão mutadas na descrição que agora faço. Sento-me naquele banco de rua, espraio as costas, acomodo-me, baixo os óculos de sol da testa, porque o sol me obriga a semi-serrar os olhos num esforço quase hercúleo e vejo que as únicas personagens que se mantêm puras são as que partilharam os filmes antigos, os mudos, os cantados, os falados e os musicados. As gentes de outrora que, por ainda cá andam, falam em viva voz, riem, trocam pareceres políticos mais ou menos fundados e discutem, com um sorriso na boca, acerca dos seus desígnios, das suas opiniões ou simplesmente da menina bonita e cabisbaixa que trespassou o grupo em metade, ignorando, por inconsciência, que ali se formava uma elipse, onde todos se conheciam, ou, pelo menos, partilhavam um propósito.
Uma mulher passa, ela também, personagem desses filmes já desbotados, o tempo corrói o corpo, mas não alma, levo-me, eventualmente a pensar, que encontramos a morte no exato momento em que estaríamos totalmente prontos para enfrentar a vida com a devida prontidão e arcaboiço… Talvez não estejamos a aproveitar o tempo que nos é dado devidamente, sei lá. Enfim, passa a mulher, em marcha corrida, por aquele ajuntamento que não passava despercebido, ao que se ouve:
- Cada vez estás melhor!
- Sou como o vinho do porto! – Respondeu com um sorriso esboçado por entre as rugas que as emoções repetidas foram desenhando no rosto.
Uma gargalhada que tentei prender com os lábios, inevitavelmente, saiu solta, com vontades próprias de riso espontâneo… viram-se os homens e riem-se em uníssono comigo, como se, de personagens do mesmo filme nos tratássemos, num ato de compromisso. Não deixei de pensar, para comigo mesma, se não pertencerei eu a um outro enredo, a um outro elenco ou apenas se sou figurante neste argumento que levo a cabo. Nos filmes antigos, a preto e branco, a calçada mantinha-se intata e as cores das personagens eram sempre garantidas pelos atores, que traziam olhos cheios, lágrimas verdadeiras e sorrisos com matizados.


Fonte:  http://www.google.pt/imgres?um=1&hl=pt-PT&biw=1280&bih=681&tbm=isch&tbnid=fnhh0Llu3at6bM:&imgrefurl=http://www.prof2000.pt/users/secjeste/arkidigi/espinh02.htm&docid=V0mpwAX_AzX5QM&imgurl=http://www.prof2000.pt/users/secjeste/arkidigi/Espinho/Espin022.jpg&w=900&h=552&ei=HpXPT560J-yT0QX-ucHJCw&zoom=1&iact=hc&vpx=370&vpy=165&dur=3847&hovh=176&hovw=287&tx=157&ty=55&sig=110984502861381323981&page=1&tbnh=121&tbnw=197&start=0&ndsp=15&ved=1t:429,r:1,s:0,i:69

segunda-feira, 4 de junho de 2012

De malas feitas


              Correm rumores de que a Joaninha nos vai deixar. Já está a dar o tempo à casa, já a vi a fazer compras de última hora, sabonetes e shampoos, com o namorado, que, pelos vistos parte com ela. Vai partir, porque sente um vazio, a réplica da impotência que todos nós vamos sentindo.
                O António, que morava ali em Espinho, irmão do João que andou comigo na Universidade, também já rumou, penso que para o Brasil. Cansou-se de esperar pelo futuro e de incorrer, em adiamentos constantes, em recorrentes passagens por um pretérito, já muito imperfeito ou por um presente já tão desgastado.
                Cansam-se assim, os muitos que se amontoam em filas das quais não se vislumbra sequer o fim, serão talvez infinitas, pois ninguém de lá volta, ou se retorna, apresenta aquele ar de cansaço, de quem correu atrás do pote de ouro, mas nada encontrou ou então retornam conformados para tentar novamente no dia de amanhã. São, às vezes, duas horas da tarde, e já deixaram de dar tiquets para o outro lado do arco-íris.
                Foi por isso que partiu o António e se segue a Joaninha, porque já lhes doíam as pernas e a coluna do prostramento constante a que eram submetidos, da espera sucessiva, dos adiamentos repetidos e por não poderem esperar mais do que um futuro próximo, um amanhã sempre inconclusivo, como se de uma pena perpétua se tratasse.
          De malas a abarrotar de dúvidas e inseguranças, partem, em filas já também, para o desconhecido, almejando um porvir que lhes permita sonhar e encontrar a concretização para os seus planos. Fogem do marasmo, da falta de oportunidade e das filas, daquelas que não têm fim à vista.
                Eles já lá foram, estão distantes em tempo e em espaço dos que cá ficaram, porque aqui o tempo não passa, ou simplesmente se arrasta e permanecemos, então, no mesmo presente desgastado e roído.
                Resta saber que destino nos compete, a nós que cá ficamos por pura teimosia, porque nos falta a coragem ou porque, simplesmente continuamos a manter a utopia de que um dia as filas possam encurtar, que deixem de nos passar à frente ou de empurrar, que os tiquets cheguem para toda a gente e que a esperança, ganhe, enfim, um novo simbolismo. Porque, no momento em que me encontro, numa espera perpétua numa fila onde se acotovelam, onde se empurram e onde toda a gente transporta os seus sofrimentos pessoais e os seus egos - uns ultrapassam as dimensões do próprio ser, e roubam-nos um lugar na espera – apenas parece que Pandora não resistiu à curiosidade e deixou mesmo escapar a última virtude.
              Essa, cabe a quem parte, que nada mais tem do que uns trocos para se governarem e as dúvidas que não se dissipam. Às Joaninhas e aos Antónios, muito boa sorte…


Emigration song by AnalogPhotographers
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