domingo, 27 de agosto de 2017

Já foi fácil, simples, livre das complexidades que o mundo têm e que eram dele, não nossas. Não sabíamos ser complicados.
Houve tempos em que os sorrisos eram espontâneos, não estavam suspensos, amarrados a uma necessidade imediata de mostrar os dentes, como prova do bem que não sentimos. Houve tempos em que as brincadeiras surgiam sem planificação prévia ou preocupações demasiadas.
Já fomos felizes e não soubemos porquê. Já fomos felizes no mais claustrofóbico recanto, porque só aspiravamos a que as paredes nos fizessem encontra-nos.
Hoje, ao nem ao pé do mais belo mar, do melhor por do sol e do sorriso mais puro sabemos recuperar o que já foi único, nosso, intocável. Hoje tudo se tornou irremediavelmente irreparável e é difícil voltar à origem de quem fomos. Deixou de ser fácil, deixou de ser espontâneo, passou a ser diferente. Passamos de perto a longe e passamos demasiado tempo prostrados na busca pelos cacos que deixamos cair.

segunda-feira, 5 de dezembro de 2016

A boca do mundo

Às vezes é o sentir as pernas suspensas - sem chão onde pisar - e a falta de ar que a pressão da profundidade exerce sobre o peito que magoa, aleija, que nem beliscão. Nem todos chegam a ver a boca escura do mundo que se abre nos lugares que só os famintos de caminhos certos conhecem. Quase ninguém chega a entrar nela e a ter de habituar os olhos ao breu, e ao não saber onde colocar os pés. E ao suster de respiração a cada passo incerto. Muitos poucos saem de lá em esforço para se habituar à luz que pica nos olhos. Os que lá permanecem - sedentos de caminhos que levem até à porta - deixam de saber o que é a luz. A luz passa a ser apenas a sensação de picar nos olhos e desaprende-se o respirar, o ver claro. O pôr os pés que não no vazio. E passa-se a saber apenas caminhar com as mãos a tocarem em paredes húmidas, a ver com as pontas dos dedos. E a colocar os pés nos degraus em abismo súbito. A gritar por ajuda, em silêncio, aos deuses sem olhos. A respirar sem libertar o ar que está lá dentro. A habituar os pés ao ar que gravita no subsolo, perto do inferno escuro, ao fundo do corredor ao qual se acede por essa escura boca que se abre no fim mundo.


(Fonte da imagem: http://www.deviantart.com/art/I-feel-the-darkness-287119576)

domingo, 20 de setembro de 2015

Uma dor (de) estranha

És um espetro a passear-te por entre os que choram a partida… estranho e inevitavelmente alheio à dor dos que perdem. Não que não tragas alma nesse corpo, nem que não sintas a agonia, mas essa é uma dor que não te pertence.
 
Chora-te a vontade do que nunca chegou a ser e o despojo da dor que podia ter sido tua e chora-te o coração pelo bocado que se partiu e que compunha os que amas.
 
Observas como os que amas gerem o buraco que lhes cresceu no coração e que jamais se curará e tentas saber acerca dessa tranquilidade e silêncio que só a morte traz consigo. Como depois de uma tempestade ficam os animais e a natureza estagnados, a aguardar pacientemente o reaparecimento do sol. Compreendes agora que a morte é uma ausência. Fica a sensação de que, quem partiu, parte temporariamente, levando-nos a pensar que voltará de aí a instantes, como se tivesse ido à mercearia ou dar de comer aos bichos. Fecha-se os olhos, na esperança de encontrar não mais que um sonho vívido. Sentes a impotência de quem é vivo e pode pouco, por igualmente ser mortal. Sentes o buraco que cresce nos corpos e tentas tapá-lo com gestos, mas a morte corrói e quase se tornam inúteis os esforços que fazes, são ínfimos, são verdadeiras migalhas de conforto perante o sofrimento que acompanha a morte. Caem-te as mãos no colo, olhas quem chora e fazes de tudo para que saibam que apesar do vazio que sentem, não se encontram sós. Choram-se as lágrimas juntas, as da dor alheia de as da dor da perda e sabe-se, enfim, que te fazem uma enorme falta os que fazem falta a quem cá fica.


 
 

sábado, 7 de fevereiro de 2015

Espectros de loucura

A loucura chegava-lhe aos pés e ela insistia em guardá-la num saco bem atado, não fosse alguém ver. Via-se ao espelho e lembrava-se de como dantes aquela loucura lhe ficava tão bem. Decidiu cortar os pensamentos à moda dos outros, diziam-lhe vezes sem conta que lhe iria ficar bem… e fica. Mas a verdade é que tem sempre saudades do bem que lhe ficava a loucura e cortou-a tanto que se deixou ficar igual às meninas das revistas, essas que são mudas, sorriem no vazio e cujos olhos perseguem os movimentos dos outros. Nunca mais viu ao espelho a loucura que dantes trazia, mesmo quando a tirava do saco, não se passava mais que um espetáculo bem ensaiado. Está fechada, que nem espetro do que foi, num mundo cénico onde era apenas convidada e passou a ser anfitriã: dá as boas vindas aos que têm loucura longa e diz-lhes como ficariam bem como ela.
 

sexta-feira, 2 de agosto de 2013

Dentes-de-leão




Manda-te o imaginário, ainda vivo, que te agarres à pretensão de sonhar. Que destrones aquele terror autoritário, que de tão despótico já te puxa as pernas, as linhas de pensamento, os pretextos e os argumentos. Foste atirado ao chão, ao chão que pisas, que em algum instante foi teu - ou ainda é. Encontras-te agarrado às pernas dos lampiões definhados - os quais circunscrevem uma luz defunta, de um amarelo quase hepático, ta apontam à cara e te interrogam a existência, lá do fundo do barulho das luzes; esses lampiões que te empurram para chão, esse que não é teu, do qual separas os pés no medo de incorrer em invasão do espaço que ali só poderá ser da sobriedade de quem o pisa… é melhor não o pisar. Não vá alguém reparar que trago coragem apertada no punho, o qual arrebata qualquer movimento que a tente roubar. E o teu rosto puxado ao de cima por quem não te estende a mão (e sabe-se lá de que cor o cansaço o terá pintado… esse teu rosto desbotado). Mastigas o medo que te deixou ali plantado, no meio de lado nenhum, numa rua com lampiões, aqueles, os das luzes hepáticas e engoles a coragem mascavada sem mastigar a aspereza que a compõe, talvez por estar amargada pelo tempo que andou exposta às expirações poluídas dos outros, dos que não estendem as mãos. Já pensaste que levam malas cheias do ânimo que foram apanhando ao pé de casa (costumava nascer de forma espontânea, mesmo ao lado dos dentes-de-leão), de pétalas rosadas das paixões que encontravam nas praias (junto aos segredos que contava o marulho das ondas) e da coragem em grão, da que vais engolindo para que não te suma toda (essa havia-a aos magotes, vendia-se avulso ou em pacotinhos como os de chá)? Não te poderiam dar as mãos. Há que nunca abandonar aquelas malas cerradas pelo tempo e pelo medo de deixar sair o que lá permance à mercê do tempo que estraga as coisas, bem sabemos. Não há que abandoná-las, muito menos ao pé dos lampiões que parecem gente bulímica, não se estenda de lá um membro regenerado de um metabolismo particular qualquer que só caberá àqueles objetos, que de lânguidos e de cabeça erguida, deitando luzes enfermas e vigilantes sobre um círculo imperfeito no chão aos cubos, se parecem a gente, daquela que anda a apanhar molhos de ânimo nas bermas da estrada, dos que havia mesmo ao lado dos dentes-de-leão… e coragem, daquela expirada em validade que eu e tu vamos engolindo para que as palavras não se emudeçam, no hermetismo do espírito que não vai ser plantado ao pé dos dentes-de-leão, e que por isso, por se esconder na cave do corpo que revelamos, é difícil tocar com os pés no chão. Sabe-se lá, as luzes podem ter olhos. Ninguém sabe o que existe no fundo das lâmpadas que nos vigiam e aleijam as vistas quando as tentamos olhar nos olhos numa conversa entre o silêncio do nosso ânimo amestrado e o barulho monocórdico que as luzes cantam.


Fonte:  http://www.deviantart.com/art/dandelion-field-84895427 (2/08/2013)

quinta-feira, 1 de agosto de 2013

A Sneak Peek III

"E os gritos, os gritos eram cada vez mais graves, a sua força também se esvaía… tomara pudesse oferecê-la àquele corpo ali caído, largado à própria metafísica das coisas. Não valia de nada tê-lo tratado como gente, se já não o era sabe-se lá há quanto tempo. O que dói a quem por cá fica, não é ver o corpo despojado, porque não passa da carcaça, mas dói porque é difícil ver as almas e imaginá-las na sua condição de transcendência. O corpo é o que nos fica na memória, o que vemos sempre que recuperamos um passado. Traz sempre uma dor imensa ver ali um corpo atirado à mercê do tempo, profanando a alma que ele vestia."

(01/08/2013 - Andreia Rocha)




"Escape to Sorrow" by utopic man
@Deviantart - http://www.deviantart.com/art/escape-to-sorrow-192544889 (1/08/2013)


domingo, 14 de abril de 2013