quarta-feira, 19 de outubro de 2011

Diário de uma amedrontada



O sono já cai sobre estas quatro paredes, mas revisito o inevitável medo e receio do amanhã que urge, nestas horas em que o silêncio e a solidão dão espaço aos terrores que transporto. Tenho medo, apercebi-me hoje que talvez fosse isso que não me deixasse dormir, que me impede de respirar fundo, que torna soturnas estas horas negras e invade os meus sonhos sem me deixar descansar… É o medo que não me deixa dormir!

É bem certo que todos têm medo… da morte, da doença, da solidão… mas o meu medo é tortuoso. Não tenho medo do que poderá terminar com a minha vida ou o que a compõe, mas medo de não a poder levar avante e não consiga sobreviver sem que perca a minha dignidade.

Começou cedo este medo… começou quando naquela casa tão cansada, os gritos povoavam as divisões, os choros nos torturavam e abraçavam e, agarrados aos corpos flagelados, sofríamos no barulho daquela habitação, e no silêncio aparente que as paredes pintavam. Logo aí, sabia que queria ser diferente, procurar um novo caminho e encontrar um outro futuro.

Esse medo também me tomou, quando as maleitas não permitiam que fosse igual aos demais. Por entre dedos apontados, por entre discriminação e maus-tratos, ouvi um clamor surdo das poucas palmas que já batiam por mim e que, pelo destino, foram já roubadas.

Continuei a sentir esse medo enquanto crescia, embora a construção de um ser, de uma alma nobre com valores nobres me dessem a coragem para alcançar as minhas metas. Fui filha notável, fui aluna insigne e cumpri o primeiro sonho. O ingresso no ensino superior, levar-me-ia à próxima etapa na conquista de um novo presente, mas o medo, ainda assim me tomava. Os recursos não eram muitos, uma vez mais, tive de lutar por um lugar ao sol, por mais recôndito que fosse. Abdiquei de férias, abdiquei da presença dos amigos, abdiquei do descanso para terminar uma etapa. Terminei-a com inesperado sucesso… ainda assim, o medo não se dissipou…

Bati a todas as portas, recebi todos os tipos de nãos, abusos e dissimulações levianas. Fiz o que não queria ter feito, trabalhei onde nunca queria ter trabalhado, para que não fosse em vão este esforço para tentar continuar a perseguir os meus sonhos… até que perdi o rumo novamente… numa casa sem alicerces, onde fazia toda a força para que as paredes não caíssem, não resisti em gastar a única esmola que me era dada pelo Governo numa nova formação. Meta cumprida de forma brilhante… ainda assim, medos, ânsias, estaladas de luva branca, baldes de água fria… Até que finalmente fui o que sempre quis ser e que me inspiraram a ser: professora. Ensinei com avidez, absorvi-me numa vida tão transitória e artificial como esta para viver dois momentos de felicidade espontânea… Sem medos…

Agora, aqui estou, novamente, numa casa onde ecoa o silêncio e onde me toma a solidão. Resta-me apenas a certeza de que esta casa, esta nova morada, já se segura com alicerces perfeitos. Mas o medo, novamente o medo… que o que sou e quero ser corrompa os alicerces que tanto trabalho tive a construir. Que o amanhã não sorria e que a esperança, já tão débil, desapareça enfim e sobrevivamos como alienados, gente sem vida movida a uma qualquer energia alternativa que nos faz apenas andar por obrigação. Onde está o nosso direito à felicidade?

Foi inevitável, com as últimas notícias a que temos vindo a assistir, não voltar a experienciar esse medo que sempre me tem assolado. Mais forte que nunca… porque até aqui, a esperança num amanhã melhor, sempre me acompanhava. Agora, neste momento, quando tento perspectivar o amanhã, apenas a fobia permanece, vislumbro somente a escuridão, uma penumbra enorme, o infortúnio e a tristeza cerrada nos rostos dos que passam.

Não me tiraram apenas os subsídios ou o emprego, tiraram-me a capacidade de, ainda que transitoriamente, ser feliz. Tiraram-me a possibilidade de viver dignamente sem que tenha que bater na porta que tanto me agoniou. Tiraram-me a minha independência e a minha capacidade de sonhar com um futuro melhor, porque isso é uma ideia romântica e disparatada. Hei-de ser sempre a que nunca teve sorte, hei-de ser sempre a que é capaz mas não pode ser, hei-de ser sempre a que não conhece ninguém e, por qualquer estrada que siga, hei-de sempre ficar no mesmo triste destino.

Como vejo os próximos tempos: a minha casa (arrendada), o amor que me toma e uma triste sobrevivência. Trabalho incerto, 2 meses, 3 meses, quiçá, já será muito bom. Sem subsídio, sem indemnizações… resta-me fazer com que o auferido nesses poucos meses de trabalho, seja equitativamente dividido por todo um ano, sem devaneios, portanto.

Procurar outro emprego? Não penso noutra coisa… Mas as lojas, os cafés, os restaurantes e todos os trabalhos menores que procuro, estão tristes e taciturnos como eu… adivinhando as próximas dificuldades.

O que fazer? Sobreviver, sem a perspetiva ou ilusão de que possamos fazê-lo com felicidade, passando as necessidades que à nossa geração, como às outras, nos aprouve. A diferença é que, fruto da solidariedade, fruto da amizade, fruto dessa mesma terra que agora surge tão árida, nunca faltava comida na mesa que dispunham os nossos pais. Neste momento, neste exato momento, mais do que o medo de uma infelicidade eterna por incumprimento de sonhos e metas, surge o medo da fome, da necessidade e das provações. Para esta alma que lutou sempre por mais e que não vê agora qualquer outra possibilidade, este é o medo que mais me aflige nestas horas mortas… Nunca fui mais do que eu própria, nunca roubei ninguém, completei as minhas obrigações com sucesso e nada mais me resta que o medo da fome. Da fome de sonhos e da fome física…

Deste País, desta sociedade, nada mais restará para além de felizardos, lambe botas, apadrinhados e pobres, pobres como nós, que teríamos potencial para calar um mundo, se não nos tivessem roubado as armas e o ânimo que nos movia. Sou, já hoje, amedrontada, desprovida de sonhos, alienada e um autómato da sociedade que me comanda. Quando for trabalhar, farei o que me mandam, no tempo para o qual me pagam, com o sorriso amarelo que trago, com pouco afinco, porque dividindo três ordenados por 12 meses, sou muito mal paga à hora. Aos meus alunos, desejo sorte, porque não serei eu a inspirá-los… Não da forma como perspetivo o futuro e como sou valorizada… de nada vale, somos meros joguetes, um número. Se o trabalho ficar bem feito, mais ou menos ou muito mal feito, de nada interessa, para o ano, outro número se ocupará dessa tarefa. Para mim, peço apenas a dádiva de um emprego, um trabalho, o que lhe quiserem chamar, para que um ordenado não tenha de pagar a renda, as contas e o sustento e fiquemos, para sempre, nesse buraco enclausurados das felicidades que os demais gozam… Quem me dera não ter estudado, não teria ambicionado a felicidade que nunca tivera nem tenho agora.

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